Recorte

Ícones lisos da costura e do bordado Grupo do vetor

Por algum motivo, como sempre ocorre, a gente nunca percebe o caminho quando o
estamos percorrendo. É preciso que, a certo ponto, se pare à beira da estrada poeirenta,
tome-se fôlego, mire-se à direita e depois à esquerda; numa tentativa desolada de posicionamento, de resposta.

Muitas vezes, entretanto, não é ela que vem; ao contrário. É a pergunta que cai inesperadamente dos céus, como se uma vida inteira não tivesse sido
suficiente para conhecê-la:


“O quanto do teu projeto ficou em mim?”


Foi assim que, numa tarde de maio, pouco antes dos 84, ela decidiu partir por uma
estrada que ainda não era a minha. Era dada a primeira lição; a de que a vida se faz na
vagareza e no silêncio. Ata com linhas transparentes todos os trapos da existência para
surpreender-nos com o manto humano.


Foi costureira. Daquelas de vestidos de noiva em camadas feito coco e roupas de
revista. Uma artista por detrás dos artistas. É só o que eu pensava saber até aqueles dias. Eis aí
a doce ignorância que nós, filhos eternos, invariavelmente temos sobre nossos pais: julgamo – los terem nascido prontos, do jeitinho que os conhecemos. Talvez porque a estrada seja mais longa do que possa parecer e a pergunta não cale, não tardou, e acomodaram-se quatro memórias ao meu lado, na sarjeta poeirenta da estrada
da vida …

Foi quando toma a palavra a primeira Memória:
“Esta sua professora de arte é muito boa… Vem cá, eu ensino a chulear, pregar o
botão, fazer o ponto de cruz…

“Vai, filha, deixa que eu termino isto, vai..”


Não tarda e vem a segunda Memória:
“Olha, filha, comprei miçangas de pérola… E um pouco de tule… Recorto aqui, costuro
ali… Quer algum detalhe na manga? Podemos tingir o tecido de um rosa bem clarinho… Um
rosa chá!”.


A terceira Memória aparece animada:
“Dezessete anos, filha… Que tal este laço rosa na cintura, e esta tiara de florezinhas
coloridas? Ficará linda no baile… Quer o vestido mais comprido?”.


A quarta Memória surge insistente:
“ Dona Pilar vai fazer seu vestido. Nem Clodovil, nem Ésper… Vamos de Dona Pilar
mesmo… Dizem que a mãe não pode fazer o vestido de noiva da filha… Fiz todos os da minha
família. Três irmãs. Menos o meu… Há de ter tule, seda, cetim no lugar de Charmeuse… O
Chiffon é bem caro… Acho que não vai dar…”.

Quando tudo parecia estar acomodado, eis que surgem outras três forteslembranças… E estas vieram em bando:


“Vou comprar um tecido prateado e fazer um macacão de manga longa para a festa à
fantasia na escolinha… Você gosta de agasalhá-lo, eu sei… Dará um lindo astronauta..”.


“Agora só falta o chapéu de caipira… Já fiz a camisa de flanela, assim você pode usar
em outras ocasiões. Aí a gente remenda com retalhos as perninhas da calça, alinhavando o
colorido! Sobrou bastante tecido… Talvez faça algo com ele…”.

“Pronto! Terminei o chapeuzinho. Verde oliva, de feltro. Completa-se com a peninha,
verde mais clara. Meu Peter Pan!”.


84 anos. Há pelo menos dez não costurava mais… Os olhos não ajudavam. Não há
óculos que bastem quando se escancaram as janelas que levam ao poente da vida. Mas deste
período às vezes também marco encontros com variadas memórias:


“Filha, enfia as linhas na agulha pra mim!”.


“Menino… Por que fez isto? Cortou o cabelo do David! Pobrezinho do boneco de pano que
a vovó fez para você! ”.

“Será que aquela fantasia de astronauta não serve pra este aqui também? Posso fazer
uns ajustes…”.


E muito, muito tempo depois dela ter-se ido pela estrada da vida, lá está o lençol de
flanela para o filho do meio; retalho perfeito da camisa felpuda usada há pelo menos vinte
anos na festa junina.


Os dicionários dizem que “parte do segredo da longevidade está na alimentação e nos
hábitos”. Com certeza. Também ela cuidava da alimentação e dos hábitos – dos dela, da
família e de quem mais se juntasse por ali. Além dos tecidos e linhas, famosos eram também
seus bolinhos de bacalhau e sua feijoada. Muitas horas diante da máquina de costura – sua
paixão – certamente foram substituídas pelas da cozinha.

Entretanto, o segredo de sua longevidade não estava apenas nisto. Residia na sua
razão de viver, no motivo pelo qual ela acordava todos os dias, arrastando as chinelas quase
silenciosas.


Por algum motivo, como sempre ocorre, a gente nunca percebe o caminho quando o
estamos percorrendo. É preciso que, a certo ponto, se pare à beira da estrada poeirenta,
tome-se fôlego, mire-se à direita e depois à esquerda; numa tentativa desolada de
posicionamento, de pergunta. Muitas vezes, entretanto, não é ela que vem; ao contrário: é a
resposta que cai inesperadamente dos céus, como se uma vida inteira não tivesse sido
suficiente para conhecê-la:


Você é o ponto de cruz, a miçanga de pérola, o laço rosa amarrado na cintura, a noiva,
o astronauta e o caipira. O Peter Pan e o descabelado David. Os fiapos de linha no chão. O dedo espetado na roda de fiar que, ao contrário do conto de fadas , deu-lhe vida longa e farta;
longeva, vagarosa e intensa.


Recortes do teu projeto que ficou em mim.

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