Ouvidos adocicados

Relato originalmente escrito para o DIÁRIO DE INOVAÇÕES 2018, uma iniciativa do PORVIR. Fiquei entre as 19 finalistas, dentre os mais de 300 participantes. Para acessar a íntegra do projeto, siga o link no final do post.

Foto por Lisa Fotios em Pexels.com

Há um ditado em Yorubá que diz: “as palavras só precisam de um ouvido adocicado para poder fazer sentido”. Repetidamente tenho pensado esta máxima como professora de Língua Portuguesa. Tantas vezes – brava e humildemente – sufoquei na alma minhas palavras só para ouvir as dos meus alunos e lhes dar autoridade vocal – aquela que os faria aprender mais pelas perguntas do que pelas respostas. Ofereci gentilmente meus ouvidos, para que entendessem a beleza de deixar surgir a voz interior (e também os seus silêncios) – o que faria deles bons e eternos leitores. 

Mas nunca esta máxima fez tanto sentido para mim quanto naquele dia. Foi assim:

Tinha acabado de ter uma experiência surreal. Não cabe aqui contá-la em detalhes, mas o fato é que fui coadjuvante numa cena que se deu no estacionamento do supermercado. Sem poder me livrar da emoção da experiência, resolvi, no dia seguinte, compartilhá-la com meus alunos. Afinal, antes de ser professora, sou narradora.

 Ao cabo de alguns comentários sobre a minha história, um princípio de caos e muitas risadas, fiz-lhes a pergunta:

“E vocês? Têm aí algo para me contar?”

Sim, eles tinham. E como tinham: eram histórias maravilhosas, paradoxalmente racionais e assustadoras, tão leves quanto doloridas, tão companheiras quanto bandidas… Todas absolutamente verdadeiras e que revelavam um José, uma Sandrinha e um Bernardo tão diferentes do dia anterior! “As palavras só precisam de um ouvido adocicado para poder fazer sentido”. E assim,  com a mesma intensidade com que os quarenta e dois ouvidos “adocicaram-se” para me ouvir naquela manhã, também eu, tão despreparada, rendi-me a ouvi-los.

Foi quando ele falou. O menino mais alto da sala. Ou o menor. Quiçá o mais feliz… Talvez o mais desinteressado. Ou o mais esforçado… Já nem sei mais. Na verdade, no momento em que ele falou, Ele não era mais ele. E, confesso: jamais, depois que Ele falou, seríamos de novo nós mesmos.

Contou-nos uma história de perda. Uma história de família. Uma história de  coragem, proferida por uma voz adolescente, em algum momento frágil e infantil; em outro, guerreira e madura. Um enredo claro e conciso, cujos personagens compunham uma cena comum, narrada em vocabulário absurdamente simples e maravilhosamente humano.

Finalizada a história, veio a unanimidade: primeiro, o silêncio – respeitoso e dolorosamente duradouro. Depois, as palmas. Por fim, os abraços e os choros. Eis o milagre que ouvidos adocicados podem fazer numa sala de aula.

Sei bem que, na escola, é a escrita que reina quase soberana e quem perde em autoridade é a fala; principalmente a dos alunos; já que, invariavelmente, nós os desenhamos como reprodutores de falas, conteúdos e conceitos. Eu mesma tenho cometido lá os meus deslizes. Mas foi a partir daquela experiência absurdamente humana que passei a considerar a voz como motor da aprendizagem e entender que bastam “ouvidos adocicados” para que a voz faça o resto.

Dito assim, parece algo pouco inovador. De fato, Platão, Aristóteles e Vieira já exaltavam o uso deste mecanismo que é a voz humana. Eu, na minha insignificância, não tive outra saída senão a de me convencer de sua eficiência. Daquele dia em diante não parei mais. Resolvi me especializar na vagareza – aquela a que se refere Rubem Alves. Cismei; me especializei naquilo que não sabia – à semelhança de Manoel de Barros. Segui assim, entendendo a voz como um mecanismo epistêmico, capaz de criar e projetar cenários de aprendizagem.

Outras experiências se deram, nesta e em outras turmas. Até que, em dado momento, brotaram, entre os alunos, narrativas sobre suas origens, sobre suas ancestralidades; motivadas principalmente pela crise migratória mundial. Foi o suficiente para que eles descobrissem o quanto de imigrantes havia neles.

Informações surgiam na mídia, mas certamente foram as narrativas ouvidas durante o almoço de domingo ou por telefone com aquela tia distante que deram corpo a um projeto autoral. Sem falar daquelas noites vasculhando fotos e objetos em cima do armário… O que ficou da experiência perpassou  pela tecnologia social da memória e também pela história, geografia, sociologia, política, arte e ética.

Erra quem pensa que a narrativa oral é um mecanismo exclusivo para as aulas de português e que dela resultarão apenas textos ou “chamadas orais”. Através dela, os alunos assumem autoridade vocal e ampliam os objetos de aprendizagem pelas lentes da emoção. No nosso caso, as narrativas sobre a ancestralidade revelaram delicadezas e espantos em família: a história dos três tios com nomes de deuses gregos, com forças igualmente mitológicas – tão úteis em tempos de guerra; o relato sufocado de emoção sobre a ventura daquele avô judeu que tropeçou na mala “certa”,  no momento “exato”, livrando-se da morte… Aquela narrativa que descreveu, com leveza e graça, o olhar de esperança trespassando o quarto destelhado até atingir o céu, em pleno bombardeio na II Guerra… E que maravilha foi reconhecer o engenho e a arte de uma família – um clã de artistas fotógrafos, vanguardistas em fotoshop,  em pleno século XIX.

A voz sela nosso DNA de narradores, desconsiderando se temos ou não dificuldades com a leitura e com a escrita. A voz narrativa nos expõe a um “status” mágico e irreversível: quem ouve uma história provoca naquele que a conta (e em si mesmo) uma sede de verossimilhança, de coerência, de propósito. Exige do outro (e de si mesmo) que fiquem claras as relações de causa e consequência; que se lapide o discurso pela gramática. Ambos clamam, por assim dizer, por personagens com alma, propósito, destino, caráter. Buscam ansiosos por inferências e contextos que façam sentido – memórias, conceitos e fatos disponibilizados pela escola (ou em outros cenários). Por fim, a voz que narra inaugura um ato coletivo, que pressupõe o outro – num balé apátrida, entre autor e ouvinte.

No mais, tudo é muito simples. Afinal, somos todos narradores de ouvidos adocicados.

ÍNTEGRA DO PROJETO:

https://porvir-prod.s3.amazonaws.com/wpcontent/uploads/2018/10/15155053/ebook_desafiodiariodeinovacoes_2018.pdf

NARRATIVAS:

» Áudio – Narrativa da memória (aluno Costantino Zunino, 8º ano): https://www.youtube.com/watch?v=yA1hVz6xp84

» Vídeo – Leitura de narrativa da memória (aluna Carolina Bianchi, 7º ano): https://www.youtube.com/watch?v=XXK-OUSqXQc

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