Isso está se tornando uma mania. Vem como um espasmo no pensamento, uma contração involuntária com capacidade de elaborar, bem antes da palavra, o significado que ela pode assumir. Dá-se de uma forma tão aguda e ligeira, que não pode ser considerado raciocínio. Nem pensamento; muito menos ação.
É assim que descrevo essa minha mania regular de ter um olhar antecipado, rápido e silencioso das cenas cotidianas; sempre vendo nelas um “detalhe significante”, o “último grau do sentido, depois do quê, nada (se tem) a dizer”1. É como se, ao olhar uma cena qualquer – na rua, da janela do ônibus, entre uma espasmo e outro – eu conseguisse destacar dela um elemento (um som, um cheiro, um objeto, um pequeníssimo movimento), e dele fosse capaz de puxar toda uma história.
Assim se deu nessa manhã, durante um breve passeio. A pé, o que é pouco convencional para mim. Do outro lado da rua, uma mulher de uns 50 ou 60 anos, talvez menos. Vestindo um chapéu de abas desalinhadas e um casaco pesado e sujo, encarregava-se de ajeitar a sacola pesada nos guidões de uma bicicleta; azul e bem menor que ela ( e me desculpem se a foto desse texto não corresponde à descrição).
A mulher me parecia familiar – e, nesse caso, nem sei se esse seria o melhor adjetivo. Não demorei para lembrar de onde eu a conhecia: dos faróis e viadutos perto de casa. Circulava de lá para cá, na maioria das vezes descalça sobre o asfalto quente ou escorregadio da chuva. Mal fechava o sinal, estendia o bracinho fino com a mão direita em concha. Diante das negativas dos motoristas no sinal, tombava a cabeça até o peito, recolhia o bracinho e a mão, e ia lá para a calçada – esperar que o farol fechasse novamente. Não fossem o encardido do casaco e as ruas escuras, poderia ser confundida com um anjo mudo, sem funções e descalço.
Certamente não a reconheci por isso: ela estava fora do seu cenário original; objeto deslocado em plena luz do dia. E ainda mais que hoje ela também me parecia ofegante; tanto que, entre uma respirada e outra, pude ver o vão dos dentes que lhe faltavam na boca.
Segui minha caminhada, pensando na bicicleta azul.
“Já tive muitas bicicletas na vida, mas nenhuma delas foi azul.” – Pensava.
Fui assim e voltei assim da caminhada; pensando nas bicicletas. Já bem próximo de casa, sobre os degraus recuados mais de meio metro da calçada, tombada sobre a curta escadinha que dava o acesso à entrada principal da casa condenada à demolição, revi o “detalhe significante”.
Era só uma roda; um “detalhe significante”, depois do qual “nada se tem a dizer”. Desnecessário foi dar mais dois passos para ver o que eu já antecipava: o azul da bicicleta e, junto a ela, o anjo mudo, sem funções e descalço.
Passei apressada. Não queria puxar prosa. Mas ela sim.
Tão logo me viu começou a falar e eu entendi uma palavra aqui outra ali. Perguntei-lhe o nome, por educação. Ela respondeu, mas não entendi. Na sequência começou a falar do marido:
“Você conhece meu marido?”- Perguntou. “É o Marcelo” – e agora eu conseguia ouvir… “Aquele que está sempre com um cachorrinho”- completou. Sim, eu me lembrava dele. Impossível esquecer como ele carregava o animal entre os braços; como um bebê.
Isso foi tudo que eu consegui entender do que ela dizia; talvez mais três palavras – polícia, dinheiro e ajuda – muito embora a mulher mexesse a boca insistentemente enquanto continuava a ajeitar a sacola na bicicleta.
Não havia o que fazer: resolvi terminar a conversa e seguir meu caminho. E então, me lembrei do frango na geladeira.
Fiquei feliz de tê-las encontrado quase no mesmo lugar: a mulher, a sacola e a bicicleta azul. Detalhes significantes para uma história.
(1) Do espanto literário ao espanto fotográfico – o punctum barthesiano (redalyc.org)