É útil

Chips - o seriado: à direita, o ator Erik Estrada

Entre 16 e 17 anos: essa era a idade que eu tinha quando comecei a dar aulas particulares de inglês para um garoto. Ele tinha 10 e morava numa vila de casas pertinho da minha. Não sei como a mãe ficou sabendo que eu estava estudando inglês, e me procurou. Ela queria que ele se ocupasse com algo ‘útil’ durante algumas tardes.

Fiquei animadíssima com a empreitada de ensiná-lo. Naquela época eu já era bastante curiosa e criativa, por isso, não medi esforços para pedir aos meus pais que comprarem uma coleção de livros de inglês para crianças – importados e caros.

Acho que esse foi o meu primeiro projeto: ocupar de maneira ‘útil’ as tardes do Alecssandro.

Ficamos juntos por quase um ano, e confesso que das aulas não me lembro bem. Mas guardei algumas memórias destes nossos encontros. Lembro que, logo após o almoço, algumas vezes na semana, ele vinha para ter esta hora de lição comigo. Entretanto, a primeira coisa que ele fazia, assim que se acomodava na cadeira, era largar a mochila no chão e colocar a cabeça na mesa.

Tinha sono, o Alecssandro. E asma.

Ele era mais rápido do que eu: enquanto eu abria os livros, colocava os lápis coloridos na mesa e soprava as folhas recém – impressas no mimeógrafo à álcool (um luxo para a época!), ele deitava a cabecinha na mesa.

Num piscar de olhos, Alecssandro dormia.

Me dava pena e eu quase nunca o incomodava. Pensava que uns minutinhos de sono lhe fariam bem. A asma o maltratava muito e subir a ladeira que dividia a minha casa da vila onde morava o exauria. Chegava sempre com os olhos marejados e os lábios muito úmidos, num eterno esforço para respirar. De vez em quando, a tosse.

Ele cheirava a xarope.

Não era difícil o Alecssandro passar parte da tarde comigo, frequentemente debruçado na mesa. Para esses dias, minha mãe sempre preparava um suco, um chocolate quente; oferecia um lanche. A mãe dele não se dava conta do tempo que ele ficava em casa, muito menos questionava se ele estava aprendendo ou não. Era útil.

A esse ponto, sejamos justos – tem mais uma memória que eu guardo do Alecssandro: ele amava um seriado da sua época: ‘Chips’. Para quem nunca ouviu falar, a série era baseada na aventura de dois patrulheiros motociclistas na California, e as duas primeiras temporadas foram lançadas em DVD – um verdadeiro delírio para o meu pequeno estudante. Para você ter uma ideia de como ele era fã da série, não era raro que chegasse à minha casa fantasiado como o ‘patrulheiro’ Frank “Ponch”, interpretado pelo ator Erik Estrada.

Com capacete, distintivo, botas, uniforme e tudo!

Com certeza esse foi o primeiro – e mais ‘útil’ projeto – que fiz na minha vida.

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