Preciso confessar uma coisa; e logo de cara para você não perder a confiança em mim: foram necessários quase 30 anos – eu disse 30 anos – para que eu entendesse, definitivamente, que cada dia da minha vida tem representado o meu desenlace da profissão de professor.
Fico até um pouco envergonhada em dizer isto a esse ponto, mas é a pura verdade: olhando para trás entendo que, desde quando, aos 17 anos ,pisei pela primeira vez em uma sala de aula, a cada dia estou desfazendo laços de uma caixa.
Talvez seja assim mesmo que um professor deva ser; em essência: aquele que, com a caixa nas mãos, se empenha todo início de dia, para enfeitá-la com o melhor laço de fita do mundo; atando e desatando, intermitentemente.
Há 30 anos tenho sido o laço de fita desta caixa, mas foi em 2017 ou 2018 que me dei conta daquele que foi o maior desenlace da minha vida:
Tinha acabado de ter uma experiência surreal; cômica até. Não cabe aqui contá-la em detalhes, mas o fato é que fui coadjuvante numa cena que se deu no estacionamento do supermercado. Sem poder me livrar da emoção da experiência, resolvi, no dia seguinte, compartilhá-la com meus alunos.
Ao cabo de alguns comentários sobre a minha história, um princípio de caos e muitas risadas, me deparei com ele: o meu primeiro desenlace consciente. Aquela minha história do supermercado (lembra?), a que contei no início da aula, não era senão uma fita prontinha a ser desatada e substituída por outra após o desenlace… Eu sabia disso e logo lhes fiz a pergunta:
“E vocês? Têm aí algo para me contar?”
Sim, eles tinham. E como tinham: eram histórias maravilhosas, paradoxalmente racionais e assustadoras, tão leves quanto doloridas, tão companheiras quanto bandidas… Todas absolutamente verdadeiras e que revelavam um José, uma Sandrinha e um Bernardo tão diferentes do dia anterior!
“As palavras só precisam de um ouvido adocicado para poder fazer sentido”.
Foi quando ele falou. O menino mais alto da sala. Ou o menor. Quiçá o mais feliz… Talvez o mais desinteressado. Ou o mais esforçado… Já nem sei mais. Na verdade, no momento em que ele falou, Ele não era mais ele. E, confesso: jamais, depois que Ele falou, seríamos de novo nós mesmos.
Contou-nos uma história de perda. Uma história de família. Uma história de coragem, proferida por uma voz adolescente, em algum momento frágil e infantil; em outro, guerreira e madura. Um enredo claro e conciso, cujos personagens compunham uma cena comum, narrada em vocabulário absurdamente simples e humano.
Finalizada a história, veio a unanimidade: primeiro, o silêncio – respeitoso e doloroso, duradouro. Depois, as palmas. Por fim, os abraços, os choros. Eis o milagre que ouvidos adocicados podem fazer numa sala de aula.
Foi a partir daquela experiência tão simples e humana que vi o quanto eu era uma incansável desatadora de fitas, laços e nós. Eu, a professora de escrita, estava há anos me esforçando para desenlaçar vozes, adocicar ouvidos para as tantas palavras do mundo.
No mais, tudo é muito simples.
Link E-book DIÁRIO DE INOVAÇÕES ( páginas 71 a 80):
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