Eu não vou estranhar se você me disser que passou a vida inteira tentando escrever bem e não conseguiu, ou que até gostava de estudar Português quando era mais jovem ou ainda estava na escola básica, mas as dificuldades eram tantas que você desistiu. Ou mais: que você nunca se sentiu motivado a escrever e que, a sua maior felicidade foi quando você finalmente entrou na universidade (ou começou a trabalhar) e pôde se dedicar àquilo que realmente gostava.
Nada disso vai me surpreender, de verdade. O que vai me deixar muito confusa é se você me disser que a escrita não tem a ver com você. E mais: se você admitir que quer distância absoluta dela. É. estes argumentos não iriam me convencer.
Posso até entender que uma ou outra pessoa queira se afastar da escrita: escrever não é tarefa fácil, pois exige uma complexidade simultânea de ações, movimentos, pensamentos, memórias e mecanismos físicos e neurais que podem deixar qualquer pessoa exausta ou maluca. Tiro por mim. Nem todo dia estou pronta para escrever – seja porque me faltam ideias, tempo, ânimo, desejo, contexto, propósito…
Entretanto, quando alguém me diz que não foi feita (ou feito, ou feite, ou feitx) para a escrita, eu me surpreendo, porque isto não faz sentido.
Explico: a escrita é um construto social, ou seja, algo que o ser humano escolheu para si. É o que o diferencia dos outros seres vivos e animais. Graças a ela o homem se liberta, conquista, aprende; aperfeiçoa-se. Não é à toa que para muitos povos, cujo histórico de dominação é violento, é forte o objetivo de aprender várias línguas; em especial a língua do inimigo. Fácil entender. Não conseguir ler, escrever e falar a língua do inimigo pode resultar na morte. Além do mais, com exceção daqueles povos brutalmente dominados, a escrita pode ser sim uma ferramenta de luta. É ela que organiza nossos pensamentos e ações e nos coloca no mundo – e o que dizer dos povos que foram proibidos de se comunicar na própria Língua?
Lembro, certa vez, de um professor que nos contou sobre os autores negros exilados e mantidos nas prisões durante o período do Apartheid. Não posso esquecer da história de um deles, que se tornou ‘traficante’ de versos libertários na prisão: toda vez que o amigo ia visitá-lo, ele , às escondidas, retirava da boca, entre as gengivas, um minúsculo papel com um verso apenas. Ao final de alguns meses a poesia estava publicada nas províncias vizinhas, que gozavam de liberdade. Esta imagem do traficante de versos é para mim emblemática e a prova de que a escrita é libertadora.
A bem da verdade, somos todos narradores. Nascemos assim e morreremos nesta condição. Portanto, se não apreciamos escrever é que algo de muito errado se deu no meio do caminho.
Apesar de fazer parte do ambiente educacional há 30 anos, preciso admitir que muitas escolas são responsáveis, sim, pelo ‘desencantamento’ em relação à escrita. E também em relação à leitura:
Escrevemos o que nos pedem – às vezes nos exigem.
Dão-nos temas para desenvolver, colocar nossas opiniões… No momento em que nós temos tanto a dizer sobre nós mesmos.
Exigem que sejamos miniaturas, protótipos para o futuro – mas ainda não tivemos tempo nem de pensar o presente.
Pedem que a gente leia. Nós, que até ontem dormíamos ao som de histórias.
Perdemos o fio da leitura e da escrita. Eis o motivo para que estas sejam, para muitos, tão enfadonhas e difíceis. Chatas mesmo. Feitas para gente chata.
Nota Técnica
A MENTORIA e o CURSO do labvozes resgatam o potencial narrativo das pessoas.