Texto de 8 de julho de 2019.
Não sei ainda se escreverei este texto para que, ao final, ele seja alegre ou triste. Estou apenas nas primeiras linhas e o que me leva a elas é um sentimento. Ou antes, um olhar. Antes ainda, uma coincidência. Ou, para usar uma palavra que respirei recentemente (não por coincidência) nas vizinhanças do território em que esta história se passa – uma sincronicidade.
Foi ontem mesmo que me veio a ideia de escrever este texto e, num ímpeto, não escrevê-lo. Surgiu a ideia tão breve quanto tão forte foi a certeza de que, para fazê-lo, deveria antes chorar por ela. Por isto ainda não a escrevi. Ainda.
Tomada de uma coragem criança, penso em como começar esta história; se pelo fim, ou pelo começo. Mais fácil será iniciar pelo começo, mas isto não me dará a certeza de terminá-la; ao menos não sem chorar. Ao contrário, mais difícil será iniciá-la pelo fim, permitindo que a tristeza se instale logo aqui, até, quem sabe, chegar ao começo.
Após um breve pensar, a resposta vem de algo que está dentro de mim desde criança; uma lembrança permanente que lhes conto brevemente agora e apenas para que eu ganhe mais tempo (e clareza) para decidir se devo chorar no início ou no final deste texto: durante muitos e muitos anos, grandes foram as festas que comemoravam meus aniversários em família – e esta já seria uma grande história para contar. Recordo-me, entretanto, de um sentimento extremo que vinha em mim no dia da festa. Era um sentimento de que precisava viver os momentos que antecediam a ela com muita, mas muita intensidade, pois estes seriam tão breves, mas tão breves, que eu nem os sentiria direito. Que eles passariam tão rapidamente, como o fluir caudaloso de um rio; impiedoso, contínuo, cruel. Lembro-me como fosse hoje de como me entristecia – e me irritava – com o atraso das amigas… Ficava indignada com seus atrasos; afinal, cada minuto contava… Como elas não percebiam isto? A sensação de estar perdendo a felicidade com o simples passar do tempo era tão grande em mim que, não raro, acabava o dia numa tristeza inexplicável, como se um fogo tivesse apagado. Quando, ao final do dia, deitava a cabeça no travesseiro para dormir, ficava a pensar como seria bom se não tivesse chegado nunca o final da festinha… Como seria bom se o tempo da espera tivesse se esticado muito e se o final derradeiro nunca, nunca chegasse! Devo admitir, entretanto, que chegar ao final daquele dia era um alívio, posto que doído mesmo era ter a ideia de não conseguir vivê-lo intensamente”.
Confesso que ainda hoje tenho esta sensação nos meus aniversários (que já foram muitos) e nos de meus filhos que, só eles, juntos, já beiram aos 80… Este sentimento, ao que parece, é bastante tolo, pois não encontrei até hoje alguém que o compartilhasse comigo…
Essa lembrança talvez me ajude a resolver o meu impasse para este texto: devo eu começar esta história pelo começo ou pelo final? Pensando nas festinhas, lá longe no caminho da minha vida, faria de tudo para não chorar ( ou chorar menos) no final delas, e, por isto, retardaria ao máximo os seus inícios: compridos seriam os dias e semanas anteriores, empenhados na compra dos ingredientes para fazer os docinhos, na escolha da roupa, nos telefonemas e convitinhos enviados… Certamente se assim o fosse, o momento final seria mais doce e eu não o choraria…
Mas a resposta é não. O momento final é sempre o “grand finale” e dele resultará sempre a recordação, plena de saudade ou o remorso. Neste sentido, não é algo que deva ser evitado ou perpetuado. Simplesmente deve vir a seu tempo. Inevitável. Assim, decido aqui começar esta história pelo início; que é o tempo primeiro, o começo da festinha… E não estou certa se esta decisão fará meu texto mais alegre ou mais triste.
“Era um sábado típico de outono, vento frio, sol suave. Lá estava eu cruzando as duas avenidas, num momento delicioso comigo mesma para fazer o nada: apenas respirar as ruas, obedecer aos faróis, atravessar na faixa de pedestres e subir as rampas da biblioteca. Que doce era poder estar ali para pensar, ver pessoas, escrever, ler… Depois disso, o almoço ao acaso, a música tocando no fundo, as quinquilharias jogadas nas calçadas… As conversas ouvidas pela metade, num território vibrante, leve, novo, sem dono.
O melhor ainda se daria mais tarde, quando eu poderia andar à vontade pela praça, vendo gente esquisita, rindo por dentro, pensando em quão esquisita eu também sou ao perguntar, semana sim, semana não, sobre a máquina de escrever de letra cursiva que meu dinheiro não pode comprar.
Não faz muito tempo que fui parar nestes lugares, mas, na minha falta de atenção para conectar o mundo, as coisas e as pessoas, demorei um tanto para perceber o que se dava: lá estava eu no meio do caminho entre a vida e a morte. Muito mais vida do que morte, eu diria. E é por isso que esta história, com toda a sua sincronia, não me fará chorar. Pois foi ali que vivera minha mãe durante toda a sua juventude, numa casinha singela que já não existe mais, para depois de se casar na igreja que ainda está lá, suntuosa, defronte à praça – aquela praça. Não longe dali, nomes de rua que ouvi falar muito na infância, remanescentes do tempo em que meu pai por ali trabalhava. Tudo numa época em que eu ainda não existia; ou como diria um dos meus filhos, numa época em que “eu ainda não era viva”…
Mas espanto maior se daria quando eu ficasse de frente ( ou de lado) com a morte… Ou a lembrança dela: a alguns metros abaixo da igreja da vida, do início de tudo, atrás do farol de pedestres que cruzei muitas vezes, despercebida do acaso, da coincidência, estava ela: a lembrança da morte, a morada dos mortos e que é também a dele – a de meu pai. E aqui, muitas lembranças dele poderiam voltar, mas a que veio mesmo foi a da última rosa, vermelha, que eu lhe dei.
Isso só bastaria para contar esta história – e não sei se, até aqui, está se dando pelo fim ou pelo começo. Mas ainda tem mais.
Toda essa coincidência de territórios – a igreja, as ruas, a praça, a vida e a morte – passou rápido demais; como devem ter passado os momentos que antecediam as minhas adoráveis festinhas que me faziam chorar ao final. Toda essa coincidência não é senão algo muito parecido com o sair para comprar “os ingredientes para fazer os docinhos”, dedicar-se para “escolher a roupa”, demorar-me “nos telefonemas e convitinhos enviados”…
Toda essa coincidência já bastaria por si, para pensar e refletir sobre a vida, os contínuos começos e sobre os seus fins. Mas é preciso lembrar que, se a analogia com a festa ainda está valendo, esta já está em curso… As amigas já chegaram, os presentes já foram recebidos, o bolo já foi cortado, o desejo já foi pensado… A festa, por assim dizer, está acabando; com o seu inevitável “grand finale”! Se a festa já está acabando, está chegando também o momento de chorar…
Não estou certa disso. Vamos em frente: fizera-se outro sábado típico de outono, vento frio, sol suave. Lá estava eu cruzando as duas avenidas, num momento delicioso comigo mesma para fazer o nada, apenas para respirar as ruas, obedecer aos faróis, atravessar na faixa de pedestres e subir as rampas da biblioteca. O território era o mesmo, sempre naquela coincidência semanal e recentemente familiar: a igreja, as ruas, a praça, a vida e a morte. Subo a primeira rampa da biblioteca e decido ficar por ali, aproveitando uma réstia de sol. É a área infantil e ali há um grande tapete macio, de plástico, com alguns livros espalhados nele. Uma bonequinha de pano está deitada sobre um travesseirinho, saindo do livro… Decido, então, recostar-me na enorme janela de vidro que separa a biblioteca daquela avenida que cruza com a outra. Sento-me, acomodo-me e, quando ia pegar o livro da mala, viro-me para a direita. Não pude mais desviar o olhar dali. Do lado de lá da avenida, podia avistar todas as ruazinhas do cemitério, as imagens, os túmulos, as árvores, as flores… Seria este o fim da festa? Deveria agora por-me a chorar pela felicidade perdida? Esboço uma lágrima, mais outra… E basta. Sinto-o olhar para mim; não meu pai e sua rosa, mas o lugar. Apenas um lugar que compõe a sincronia deste enorme território de pequenas coincidências.
A sincronicidade agora está comigo e não me fará chorar. Ah, se eu soubesse disso antes, bem antes do início das minhas festinhas de aniversário!