Só amor

Queridos pais,

Já vai longe a época em que, pela última vez, pude estar com vocês pessoalmente.

Pai, se não lhe falhar a memória, vai se recordar que, naquele dia, conversei pouco depois da meia noite com você. Até hoje dou risada quando lembro de como você insistiu para falar com o primogênito dos netos – o único que conheceu em vida. Naquela madrugada, por telefone, insistente como uma criança, você me convenceu a acordá – lo, sempre dizendo o que sempre dizia: “a sua função, minha filha, é educá-lo; enquanto a minha, ao contrário, é mimá-lo…” Ninguém podia resistir aos seus argumentos, papai – e eu, como filha criada no amor, não poderia ver aquele momento como inconveniência ou coisa parecida… Era só amor mesmo, apesar do adiantado da hora.

Estávamos todos certos, papai: sempre foi só amor.

O amor também sempre foi consenso para você, mamãe: impossível não lembrar das rendas aplicadas nas camisetas e vestidos que fazia para mim, num tempo em que quase tudo já se comprava em lojas. Era um amor que perseverava até não poder mais – mesmo quando os olhos não enxergavam tão bem. Lembro de quando passou o momento das rendas mas chegou a hora dos bonecos de pano e das fantasias – de caipira, de astronauta, de Peter Pan – artigos disputados agora por outros dois netinhos que vieram.

Fico pensando se hoje eu seria compreensiva com você, papai, caso me ligasse na madrugada… Me pergunto o quanto daquele amor ainda consigo, diariamente, festejar em mim – e também em meus filhos. Me questiono se ele, o amor, está reverberando ainda agora nas coisas que faço, com as pessoas com quem estou. Muitas coisas mudaram, é fato: não faço os almoços de domingo, os docinhos do aniversário, e mal sei pregar um botão. Poucas são as vezes em que me pego me divertindo com as desobediências ou mimos alheios. Sou outra. O tempo – e o amor – me transformaram.

De toda maneira, essa certamente é a minha melhor versão.

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