Texto escrito originalmente em 13/12/2019 com o título de No alinhavo da vida
Sou uma pessoa que ama sinais, quero dizer, aquelas evidências (gratuitas) de sincronicidade na vida. Não que eu passe o meu tempo tentando um encontro com esses ‘momentos’, mas eles apenas acontecem.
Não vou mentir que, por duas ou três vezes nessa minha vida eu já tenha buscado (com certo fervor) tais evidências. Em todas as vezes elas vieram e sou grata por isso. Porém, talvez porque esses sinais e evidências da vida já tenham me salvado a pele, é que eu prefira não esgotar a minha cota.
De toda maneira, preciso dizer que não é raro que eu sinta o hálito da sincronicidade na minha vida. No título desse texto está a prova: Nina e Simone. Mais adiante da leitura eu explico o porquê. Por ora, inicio essa prosa tirando do rascunho um texto que escrevi há mais de um ano e meio, bem antes da pandemia:
Adoro este texto. Sabe aquela sensação de se reconhecer naquela fotografia antiga na estante da vó? Ou então de sentir aquela quentura do mar assim que pisa nas areias? Algo assim… Enfim, convido você a lê-lo. Quem sabe você tenha a mesma sorte que eu…
Quanta vantagem está em entender a vida como um desalinho! E assim tentar vivê-la na maior parte do tempo. Para alguns, essa postura diante da vida é quase absurda… Paralela e, sem eufemismos, bem louca mesmo. Pode até ser, mas, confidencio aos que assim ainda creem, que pensar dessa sua maneira é que é, de fato, um grande absurdo; e a estes dedico todo o meu tédio intelectual. A este ponto, quem me lê pode substituir a expressão tédio intelectual por um disfemismo, se assim preferir. Não me incomodo. Sei que opiniões também poder ser ou permanecer desalinhadas em nós, mas todas merecem ser respeitadas. Pois que se tem algo que aprendi é que todos nós temos lá os nossos retalhos desalinhados na vida; e muitos deles são os que verdadeiramente importam.
Quando digo que a vida é viver esses retalhos desalinhados de paradoxos, não me refiro àquele discurso de sabedoria que diz que vive bem quem consegue ver os bons momentos que a vida proporciona, ou aqueles aos quais devemos sempre agradecer… Tampouco refiro-me àqueles momentos que são prova de que nos livramos de algo ruim, ou fazem saltar à frente oportunidades e bênçãos… A estes momentos acho sim que é possível – e preciso agradecer – por quê, não? Mas afirmo aqui que a vida é muito, muito mais do que isso: a vida é um lindo fio desgrenhado e fino, somente visto por aqueles que têm olhos treinados, paradoxalmente descuidados, alinhavados, às vezes atados, a tais bonitezas.
Permita-me deixar claro o que digo, antes que engrosse o rol de pessoas que pensem que minha vida segue paralela – e absurda – a de todos os outros:
Aconteceu-me hoje, finalzinho de tarde. Céu ameaçando despencar em São Paulo. Aguardo para atravessar o perigoso cruzamento (não, não se trata de uma história de ação, perigo e aventura, um tanto previsível para o leitor mais bem treinado com palavras e intenções). O trânsito está intenso e não consigo atravessar na faixa na primeira tentativa… Nem na segunda. Gotas grossas de chuva começam a cair, esporádicas e ignorantes ao semáforo tão demorado. Gosto delas. São frescas e fazem subir do chão o cheiro quente do asfalto molhado. Estivesse em outro lugar, o que subiria seria o cheiro de terra. Ou grama. E isso deixaria o momento mais bonito, não é mesmo? Mas não foi assim. O cheiro que subiu foi mesmo o de concreto e asfalto; mas algo bastante apreciável… Não demora muito e as gotas começam a despencar mais intensas. Enquanto espero que abra o sinal pela terceira vez, abrigo-me rente e inutilmente à marquise da biblioteca, depois debaixo da árvore gigantesca que, de tão alta, pode olhar para as ruelas que avançam no cemitério que fica do outro lado da rua… Como preciso me decidir e atravessar a avenida, desafio-me a deixar molhar os cabelos. Decisão difícil mas necessária. Entendo que não posso ficar lá o dia todo e, embora as gotas se apressem a cair mais frequentes e grossas sobre os meus cabelos – como que a comemorar a novidade de ter ido, na tarde anterior, à cabeleireira e escová-los para a festa da noite – sigo corajosa, não sem antes colocar a bolsinha comprada na praça sobre a fronte. Ao menos não quero molhar a franja… É sempre muito horrível molhar a franja!
Neste momento, aproximam-se dois rapazes que também desejam atravessar o cruzamento. Entretanto, eles, diferentemente de mim, estão mais preparados; cada qual com seu guarda-chuva aberto para o céu e suas gotas de chuva. Um deles se aproxima e, com um sotaque muito sutil de estrangeiro me pergunta se eu gostaria de uma “carona” no guarda-chuva dele.
Confesso que, certeira nos paradoxos da vida, fiquei atenta à cena e aos personagens. Logo vi que os jovens aparentavam ter, ambos, não mais que vinte e dois anos – tinham vinte – e trajavam roupas iguais. Detalhista, busquei no outro o pequeno crachá que indicava a igreja a que pertenciam – parecia meio óbvio, já a esta altura, que estavam juntos em algo.
Um dos rapazes, José e falante, logo me disse que não fazia sentido algum que não me desse carona no seu guarda-chuva, já que estavam indo para a mesma direção. Aceitei o convite pelo paradoxo do momento.. Estou sempre atenta a ele; ainda que para vivê-lo como retalho.
O rapazinho detrás não falava, apenas nos seguia – na conversa e no trajeto molhado. A esta altura, a chuva era intensa e o guarda-chuva não fazia nada mais além de proteger nossos cabelos. Sim, porque José, mexicano de origem, também não queria molhar os seus; e não me disse mais nada sobre isso.
Falamos de muita coisa. Da chuva, dos cabelos, dos lugares de onde viemos, para onde pretendíamos ir, o que iríamos fazer em seguida – ainda que ensopados! Mas o que mais me encantou foi a leveza da caminhada, tão gelada e molhada àquela altura. Sabia sim desde o começo que havia naquele rapaz uma intenção tão sutil, tão pequena, tão legítima e sincera que passava tranquilamente pelo propósito de me dar o “santinho” da sua igreja (e fé) no final da conversa e de me orientar a ligar no número que estava atrás do panfleto para marcar uma visita dos missionários à minha casa. Entretanto, o que contou mesmo foi a leveza da caminhada, a camisa molhada, os tênis ensopados, as gotas que resvalaram nos cabelos a despeito do guarda-chuva, o espichar da caminhada para a dupla de rapazes, que me levou até a porta do estacionamento onde eu havia deixado o carro.
Em poucos minutos os retalhos da vida se juntaram – coloridos, encharcados de alegria viva e simplicidade. Não demorou nada para que os rapazes subissem rua acima – molhados, obstinados e realizados pela breve e tão descuidada jornada que nem garantiu que eu soubesse o nome do outro rapaz… Também assim se deu comigo. Em comum, o paradoxo da grande diferença de caminhos, propósitos e alegrias. Em comum, o alinhavo da vida – algo mais que cabelos secos.
Não bastou isso para regar o meu dia. Ainda deu tempo de cruzar na calçada com um quase “ilustre conhecido” que, na sua sincera e prodigiosa visão, me desejou um bom ano. Seria pouco, comum e talvez algo muito previsível nesta época de ano, não fossem suas palavras tão bem colocadas: augurou um bom natal para mim, na certeza de que os acessos, as pontes, os chãos que provi como mãe durante todo aquele longo ano estavam corretos. Desejou-me mais de uma vez um bom ano, dizendo-me para aquietar o coração, pois que tudo já tinha sido feito e que eu poderia ficar em paz…
Quantos alinhavos serão necessários para arrematar esta minha vida?
“Os suficientes”, ele teria dito. “Os suficientes”.
Essa história me emociona, pois é uma prova daquela sincronicidade que a gente não pede – que vem de graça. É o hálito da sincronicidade no nosso pescoço.
Não pense você que, a esse ponto, me esqueci de como iniciei esse texto: assegurando que explicaria o porquê do título. Agora é a hora, mas serei breve: conheci a Nina outro dia. A Simone, há mais tempo. Juntei-as pelas evidências, pelos sinais, convidando-as para uma oficina de escrita gratuita que organizei (para saber mais, ouça os episódios da 1ª Temporada do Podcast Eu, Storyteller).
O fato é que fui eu mesma o hálito da sincronicidade para elas, que, fundamentalmente, veio da necessidade de ambas contarem suas histórias. Nina e Simone são exemplos de uma recente sincronicidade. Mas estes nomes… Nina e Simone… Nina Simone…1 Olha lá eu projetando ( e atraindo) novas sincronicidades… Seria outro sinal?
- Eunice Kathleen Waymon, conhecida pelo nome artístico Nina Simone (Tryon, 21 de fevereiro de 1933 — Carry-le-Rouet, 21 de abril de 2003) foi uma pianista, cantora, compositora e ativista pelos direitos civis dos negros norte-americanos. O nome artístico foi adotado aos 20 anos, para que pudesse cantar blues escondida de seus pais, que não aceitavam sua opção de ser cantora, enquanto treinava para tornar-se uma pianista clássica, em bares de Nova York, Filadélfia e Atlantic City. “Nina” veio do espanhol menina e “Simone” foi uma homenagem à atriz francesa da qual era fã, Simone Signoret. Quando jovem foi impedida de ingressar no Instituto de Música Curtis na Filadélfia.Também se destacou por posicionar-se contra o racismo na crescente onda que tomava os Estados Unidos na década de 1960. Devido ao seu envolvimento, cantou no enterro de Martin Luther King.
Ousaria começar meu comentário avisando que não sei me expressar ou escrever tão bem?! Ousaria ao final de cada palavra colocar dois sinais contrários como estes !? . Eu diria que estava avisando como seria difícil me expressar e expressar em palavras a tamanha satisfação e devorar e tentar entender cada frase e posicionamento do texto. Talvez em uma frase posso tentar me descrever!
Minha amiga se assim já posso chamar, de mente sem barreiras, de coração viajante, eu me sinto imensamente lisonjeada com este registro de linhas do nosso tempo que ninguém poderá apagar! Agradeço por encher meu coração de alegria e me incentivar com esses sinais a não parar e muito mais do que continuar…a voar nesse imenso horizonte sem fim que possui o poder da nossa fala!
Era pra ser uma frase mas você me inspirou!