200 mil palavras

Foto por Suzy Hazelwood em Pexels.com

Vai no Google e faz um rápida pesquisa: quantas palavras há em uma única página de livro?

Ora, muitas são as respostas, mas se você estiver com preguiça de fazer as contas, pode ficar com esta: 100 páginas de um livro equivalem a 25.000 palavras; e isto significa dizer que, em média, uma página de livro precisa de 100 palavras…

Por que toda esta ginástica com a aritmética? Ora, para confrontar este resultado com outro: uma pessoa fala, em média, 16.000 palavras por dia… Duvida? Vai lá na barra do Google de novo.

Olha, a pesquisa não é tão intuitiva e fácil assim. Nas primeiras buscas do Google que fiz, logo aparecem informações de que o número de palavras que uma pessoa fala diariamente deve variar entre 8 e 20 mil (há dias em que estamos mais calados); sendo que as mulheres encabeçam o score. Diante de tamanha disparidade nos números, resolvi procurar alguma informação mais científica. Logo achei um artigo do Dr. Drauzio Varela1, de 2011 (lá se vão 10 anos deste texto e penso que já esteja até perdendo a validade científica) e é com estes dados mesmo que eu vou ficar. Trara-se de um artigo bastante descontraído esse do Dr. Drauzio em que, a certo ponto ele escreve:

Entre 1998 e 2004, foram estudadas 396 pessoas: 210 mulheres e 186 homens. Os participantes pertenciam a seis grupos de universitários de 17 a 29 anos de idade. Os resultados revelaram que, durante um período de observação médio, que variou de dois a dez dias, no decorrer de 17 horas de vigília diárias, as mulheres pronunciaram em média 16.215 palavras por dia, e os homens, 15.669. Realmente, as mulheres foram mais prolixas. Mas, ganharam por apenas 7%, diferença que não alcançou significância estatística.

Esses dados são suficientes para que a minha volúpia aritmética ataque de novo: embora o artigo seja de 2011, o estudo a que se refere o Dr. Drauzio é de 2004… Fico imaginando Maria, mais falante que João segundo o estudo, disparando implacavelmente as 16 mil palavras diárias que lhe couberam desde então… Algo em torno de 60 páginas de um livro por dia – desde 2004.

E tudo isso para dizer o quê?

Que certamente desperdiçamos palavras. Ou que, talvez, não sejamos bons personagens, ou que não entendamos que a história é nossa e quem define o arco narrativo somos nós. Quer que eu prove? Eu mesma falei hoje 16 mil palavras dentro de casa, em plena pandemia, enquanto alguém morria sufocado. E o que eu disse? Nada. Não construí uma história, não salvei uma donzela, não capturei o bandido, não atravessei o rio a nado. Não enfrentei um perigo, não fiz uma revolução, não salvei ninguém.

Embora tenha falado tanto, minhas palavras foram desperdiçadas aqui e ali; e lá fora, tantas outras pessoas estiveram também a falar em forma de veneno e vaidade; sob o pretexto de criar história alguma e para chegar a ponto algum. E pior: se pensarmos nas palavras ditas como signos para construir uma página, hoje mesmo ocorreu de personagens as desperdiçarem de propósito; empenhados na desumana tarefa de calar, sufocar e matar.

a pergunta é: se o que move uma história são as emoções e ações de seus personagens – e as palavras devem dar conta disso – para onde vão as palavras dos personagens calados, e dos que ficam sem ar, sem vida, sem dignidade, sem representatividade?

Estou certa de que poderiam têm lá as suas páginas reservadas num livro, mas a certo ponto estão em branco, interrompidas. E nós os sobreviventes do silêncio, podemos todos nos envergonhar delas.

NOTA TÉCNICA:

Esta nota é longa, e quase valeria outro texto: é preciso dizer que este texto foi escrito em 14 de janeiro de 2021 – dia em que faltou ar para os cidadãos, bebês prematuros, acidentados e todos aqueles que se viram necessitados de oxigênio em Manaus. Mortes anunciadas num país que é sábio em fazer histórias assim: não nos esqueçamos, por exemplo, da asfixia permanente das histórias sepultadas sob a lama de Mariana… Também é preciso dizer que eu o escrevi hoje baseou-se no que ocorreu em 15 de janeiro de 2021 – dia em que o Planeta contabilizou 2 milhões de mortes. E concluo: para o caso de querermos escrever apenas uma página do livro da vida destes brasileiros que foram vítimas desta pandemia, nosso livro de memórias teria exatas 200 mil palavras.

Referências:

(1). Tagarelice feminina | Artigo | Drauzio Varella – Drauzio Varella (uol.com.br

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